domingo, 21 de junho de 2009

Nota

Comia chocolates enquanto as buzinas tentavam hipnotizar a chuva, crendo ser a voluptuosidade do líquido vertical a verdadeira causa do cessar. Os faróis traduziam sua fadiga num longo piscar que se derramou por toda a imensa fila de carros e, quanto mais os motoristas pisavam no verbo, mais a imobilidade se instaurava. Desejava não estar ali, mas não fora possível sair em outro horário.Uma longa nota-não-executada num dado momento do dia ressoava ainda.
Enquanto o cacau derretido perdia-se entre os pelos gustativos de suas papilas, seus ouvidos continuavam atentos.Ela procurou a nota no bramir do teto metálico agredido pelas gotas espessas; no escorrer regular intermitentemente interrompido pela borracha do para-brisa. Não estava lá. Procurou no barulho do portão automático que revelava a garagem, no apito do alarme; ainda não estava lá.
Despertou do rumor das roldanas que a elevava graças ao solavanco e ao ranger da porta. Não encontrava a nota no tilintar das chaves, nem no giro dos botões do fogão, nem no roçar do garfo e da faca .
Quase enxergou a nota no dispersar sinuoso da fumaça que parecia dotá-la da capacidade de aparar todas as arestas, de explicar a chuva, de encontrar seu lugar entre prédios e esquecimentos.A nota delineava-se no vazio quando o telefone tocou imperativo.Retirou o aparelho da base, foi ao banheiro: “Alô” – enquanto o algodão da calcinha deslizava em suas coxas .Convidada pela chuva, que ainda caía, a urina tocou a branca e fria louça. “Primeiramente, gostaríamos de agradecer, senhora, por nos conceder a imensa satisfação de tê-la como cliente...” “Chiiiu!” – respondia ela para a urina, estendendo seu indicador sobre os lábios do mundo num pedido encarecido de silêncio. “Se a senhora tivesse trinta mil reais, a senhora saberia o que fazer com esse dinheiro?” “Hum ... humm”. “Então, economizando apenas um real e sessenta e cinco centavos por dia, a senhora pode... Senhora? É muito um real e sessenta e cinco por dia?”. O ronco das barrigas diariamente privadas de um real e sessenta e cinco centavos ecoou, mas não teve forças para argumentar e disse apenas “acho”, frustrando a expectativa do operador de telemarketing que fingiu não entender e insistiu “Com o título de capitalização...”.Ouviu ainda as últimas gotas de sua urina. Busca inútil.
Prendeu o telefone entre o ombro e a orelha para desenrolar o papel higiênico e a nota girou em sentido contrário desenhando no branco pontilhado o momento da não-execução: Era dia do rodízio de seu carro, então o deixou no estacionamento do metrô mais próximo a fim de pegá-lo à noite. Seguiu seu caminho utilizando o transporte público como sempre fazia às quintas-feiras. Naquele dia teria de trabalhar até mais tarde, fato este que contribuiu para a pontualidade de seu mau humor. Seu dia de trabalho, obedecendo ao princípio da mediocridade, não foi nem mais nem menos pior que os outros. As horas é que irritavam, aquele estender sem fim. Com tantas horas extras talvez pudesse fazer um título de capitalização.
Trabalhara doze horas, comera mal e dormiria pior ainda, sozinha. Há tempos o suor de um homem não regava seus poros e por isso ultimamente o desejo brotava mais vigoroso.Quando saiu do ar condicionado, percebeu que do lado de fora as condições eram outras, chovia. O guarda-chuva havia ficado no carro, todos os colegas já tinham ido para casa. Podia esperar a chuva passar, mas não havia sinal de que a trégua viria tão cedo.Correu dificultosamente sobre seu salto. A estação não era distante.
Os grossos pingos da chuva bolinaram seus seios insinuando as aréolas através do claro tecido. Ao chegar na estação e dar por isso cobriu-se com a maleta impermeável em que levava seu notebook. Pelo menos àquela hora era menor o número de usuários, se entregou ardentemente ao cansaço, de modo que abandonara sobre o colo a maleta e, alguns minutos depois a lembrança da blusa molhada a fizera acordar de sobressalto. Notou então, que o homem que sentara ao seu lado a olhava. Incomodou-se, recolocou a pasta sobre os seios e recuou no banco.
O sujeito não se intimidou, sacou do bolso de sua calça social uma belíssima carteira de couro e começou a conferir de modo extravagante o extrato bancário.Entre uma conferência e outra lançava olhares para ela. O homem continuou o jogo de sedução guardando vagarosamente o extrato e exibindo os inúmeros cartões de crédito.Levantou-se, retirou as chaves do bolso como quem anuncia uma sentença. E ela se sentia culpada, não por arrepiar-se ao imaginar aquela barba varrendo de seu corpo a ausência de vida, mas por perceber que um rapaz que permanecera em pé um pouco mais adiante assistia ao jogo e ansiava saber o resultado. Ela abaixou a cabeça, mas pôde ainda acompanhar o olhar cobiçoso do homem que caminhava a passos lentos em direção à saída. Carregava ainda a esperança de que subitamente ela se levantasse, mas a campainha soou anunciando a não- execução. As portas se fecharam. A nota estava lá.
Agora, abaixava a calcinha para o título de capitalização, sem que os olhos do mundo a vissem e justamente por isso, o mundo se orgulhava dela.

Priscila Santos

2 comentários:

  1. Priscila, nos detalhes há uma imensidão de sentidos, sensações, volúpias...
    Recordei-me de Vida Breve, de Juan Carlos Onetti.
    Como e bom escrever e sentir o mundo.

    Um forte abraço daquele que desapareceu, mas não esqueceu uma amiga.

    Fábio

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  2. Pri,

    há cenas tão bem construídas que fizeram me sentir um voyer. A personagem ganha vida dentro de uma narrativa que consegue - e isso é coisa rara - uma pulsação muito orgânica. Por isso ficaram muito evidentes para mim alguns detalhes que quase atrapalham essa organicidade.
    Se você quiser, depois eu posso apontar isso pra vc.
    E obrigado por me proporcionar mais essa deliciosa leitura de uma contista que está me saindo uma grande artesã da matéria-prima oferecida pela metrópole!

    Bisous, mon amie!

    Jo

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