Miudeza de palavra
As palavras lançam clarões sobre o mundo, mas quando se é pequena, a luz cega:uma coisa não quer dizer só uma coisa, é preciso que o ar seja domado por dentes, língua e lábios para que o som se desenhe exato. É difícil se apropriar do mundo e fazer-se entender por ele. Junto com as palavras vêm as pessoas, ou será o contrário? Pessoas das quais ela nunca ouviu uma palavra sequer, eram um poço de mistério. Como aquele velhinho que mancava, pai do seu Artino, tinha um chapéu de feltro esverdeado e encardido, usava bengala e a única coisa que ela vira sair de sua boca era o repugnante movimento da dentadura. Certamente se tratava de um monstro. Será, que se algum dia o tivesse ouvido falar se convenceria do contrário?
Vó Audócia ela ouvira diversas vezes e duvidava um pouco da sua condição de bruxa. Talvez fosse má só às escondidas. Todas as crianças da rua gostavam da negra senhora que também usava dentadura, mas a dela não mexia dentro da boca. Às vezes, quando Audócia aparecia sem a dentadura, sua boca ficava murchinha e a menina chegava a se convencer de que ela não era bruxa coisa nenhuma. Pagava doce às crianças, pedia para lhe buscarem cigarro e dava-lhes o troco. Paçoquinhas, corações de abóbora e batata. Como era bom girar o baleiro de vidro, ouvir aquele ranger chacoalhante e colorido das balas e rodar a tampinha de alumínio embaçado pelos dedos sujos das crianças...Infinidade de doçuras.
Não, definitivamente, alguém capaz de proporcionar alegria tão singela não poderia ser bruxa. Mas é que vó Audócia usava sempre aquele roupão roxo em conjunto com aquelas chinelas de pano no mesmo tom, que lembrava as cores do velório de um vizinho, o caixão era de um roxo brilhante igual ao do roupão da vó Audócia. Além disso, a vó comia inçá. Está certo que era divertido caçar os bichinhos: Todas as crianças pegavam varetas compridas e finas e saquinhos plásticos, iam para um grande campo de futebol de terra vermelha, enfiavam as varetinhas nas casinhas dos bichinhos e voltavam com dezenas de insetos para o gosto da vó Audócia. Como recompensa, recebiam dinheiro para o doce.As cabeças dos insetos eram arrancadas e suas bundinhas eram fritas em óleo bem quente, o cheiro era insuportavelmente forte. Depois, misturadas com farinha de mandioca serviam ao paladar da vó que comia com as mãos. Comer aquelas formigas só podia ser coisa de bruxa! Sem contar que por diversas vezes vira no fundo do quintal da velha bonequinhos com agulhas espetadas.
Mas ela não falava como bruxa e as palavras, vou te contar, as palavras confundem a gente, principalmente gente miúda. Certa vez, um amigo de seu pai passava na rua perguntou a ela:
– Tudo bem?
E ela que estava verdadeiramente envolvida com uma questão prática que lhe atormentava respondeu com a sinceridade que convém a uma criança:
– Não, a calcinha da Xuxuca arrebentou?
O homem, ao vê-la com uma boneca na mão ignorou o problema. Ele não perguntara se estava tudo bem? Ela respondeu.
As palavras são realmente muito complicadas. As pessoas dizem o que não querem dizer e não dizem o que querem ou, pensam dizer uma coisa quando na verdade dizem outra. É muito difícil fazer-se entender.
Naquela noite estava com uma de suas irmãs na casa de uma vizinha que se chamava Mônica, na sua concepção este nome não podia pertencer à amiga de sua irmã, pois já pertencia a uma certa boneca dentuça muito famosa, mas parece que os adultos não entendiam isso. Para a menina, o fato da amiga da sua irmã ser dentuça não era mera coincidência.
Aliás, os nomes das pessoas são palavras que para as crianças trazem em si alguns mistérios, por exemplo, não tem o menor cabimento uma criança ter na infância o mesmo nome que terá quando adulto, pois para uma criança é muito claro que é incoerente um adulto se chamar Gisele ou Gustavo. Tamanho foi o susto da menina ao descobrir que seu nome a acompanharia pelo resto da vida. Não era possível, outros amiguinhos pensavam como ela, inclusive, brincavam de escolher os seus nomes para quando ficassem velhinhos, é óbvio que nomes como Ana ou Antonio combinam muito mais com “Dona” e “Seu”, porque afinal de contas, não era assim que seriam tratados?
Bem, voltando àquela noite na casa da Mônica (atenção, a amiga e não a boneca!), mais um nome veio se meter na vida da menina. Estava ela sentadinha num canto da cozinha medindo seu alcançe sobre o mundo, dizendo em voz baixa o nome de tudo que ali estavam: mesa, cadera, chão, tapete, amário e...
– Ô Tata, lá em cima como é que chama? Disse a menina apontando o dedo para o teto da casa.
A irmã olhou sem muito interesse, pois conversava sobre algum namoradinho com amiga adolescente, e secamente respondeu:
– Telhado.
Enquanto Mônica respondeu ao mesmo tempo:
– Teto.
– Telhado ou teto? - Indagou a menina.
– Os dois! Responderam as adolescentes.
E a menina continuou a listar: telhado, teto, alto, céu...
– Ô Tataaaa! Céu é teto ou telhado?
– Como assim menina?
– O nome do céu é teto ou telhado?
– Céu é céu, teto é teto e telhado é telhado!
Como ainda não dominava as palavras complicadíssimas, calou-se e continuou a listar: geladera, fugão, panela, pia, copo, plato, pato, não, não esse é bichinho...
– Tata, como é que fala o nome daquilo mesmo?
– Ai que saco! Daquilo o quê?
– Ali ó, em cima da pia, aquilo que a gente come nele.
– Prato.
– Ah! Prato.
E continuou: janela, tornera, póta, gatu...
– E aquele bichinho ali em cima da geladera?
– Mônica, fala com ela que eu já tô perdendo a paciência!
– É um pingüim, pequena. Agora brinca aí quietinha pra gente poder conversar, tá bom?
Ao lado do pingüim a menina descobriu algo, coberto por uma capinha rosa xadrez. Levantou-se, aproximou-se da geladeira e começou a pensar no que seria aquilo, será que era um outro pingüim? Ou seria algo que sentia frio, pois estava coberto, ou estaria coberto porque ninguém podia ver? Certamente, se perguntasse à sua irmã novamente levaria uns petelecos. Então, arrastou vagarosamente a cadeira, subiu com alguma dificuldade e quando suas mãozinhas tentavam tocar o misterioso objeto. A mãe de Mônica chegou na cozinha e segurou a menina em seu colo dizendo:
– O que vocês duas estão fazendo aqui que não tomam conta da menina? Quase que ela despenca no chão!
As moças olharam surpresas e não disseram nada. Enquanto a menina insistia no seu intento:
– Dona Cida, como que chama o nome daquilo ali ó?
– Onde?
– Ali, em cima da geladera.
– Eu já falei que é pingüim. Interferiu Mônica.
– Não, o outro!
– Qual?
– Ali, de ropinha cor de rosa.
– Ah! É o LIQUIDIFICADOR! Agora vai brincar e não suba mais em nada porque é perigoso. E vocês, fiquem de olho nela que eu vou ver a novela.
Ninguém tirou a capinha para que ela pudesse ver. A menina sentou no mesmo cantinho e ficou tentando decifrar o que seria aquele objeto de nome tão difícil e por várias vezes tentou repetir dizer: liquidor, ficador, quificador...
Foi com sua irmã para casa, dormiu e acordou com aquela palavra na cabeça. Brincou, comeu e aquela palavra não lhe saia da cabeça. Vó Audócia pediu para ela ir lhe comprar cigarros. A menina ganhou o troco como de costume, mas antes de ir comprar doces não resistiu e perguntou:
- Vó, o que é quificador?
- O coração, minha filha, o coração é que fica dor.