terça-feira, 22 de maio de 2012

A flor de pano

Os consensos têm seus graus de consensuação, se é que isto existe. Está vendo? Acabo de chegar num consenso a respeito da fibra primeira que tecerá essa narrativa. Escrever é consenso dolorosamente solitário, as palavras sangram.

Falava do consenso que as pessoas possuem sobre as coisas. As flores, por exemplo, estão consensualmente ligadas à delicadeza, ao bom tom, ao amor, à beleza ...

Para ele não.

Curioso não associarmos instantaneamente flor à morte. Inútil tentativa de perfumar a dor.

Por isso nunca dera flores a mulher, não combinava com o jeito rústico que ele herdara de seus pais primeiros: sol e terra. As pétalas talvez estranhassem a dureza de suas mãos e se sentindo feridas, defenderiam-se, murchando, timidamente. E ele, encontraria na lenta e silenciosa defesa da flor a evidência de que suas mãos não sabiam tocar.

– Fulô é coisa pra gente morta! Tu ganhô fulô? Mas tu não morreu ainda? – dizia ele.

Se para flores seus dedos não serviam, do som eles eram escravos. As cordas de aço, domadas por troncos grossos, curtos, negros e calejados: eis os dedos de meu pai.

Se não era possível a pétala, cordas com delicadeza de corte não feriam seus cabeçudos dedos. Perfume invade a gente pela lembrança; som, pela alma. Cheia de alma a casa ficava quando choravam as cordas lá no fundo do quintal.

Talvez a respeito da música haja menos consenso do que a respeito da flor. Culpa dos ritmos que nos permitem associar música ora à tristeza, ora à alegria. Contudo, não é hábito haver música em velórios.

Ia para o fundo do quintal sempre que brigavam. Minha mãe, que não era dada ao falar, esfregava-lhe na cara palavras duras, o dedo em riste apontava diretamente para a falta de tato de meu pai. O dedo na ferida.

Então, só restava a ele o melancólico violão. Tocava para as couves e quiabos, parecia até que estava pedindo para a horta tão adorada por minha mãe que intercedesse por ele. Às vezes, eu achava que funcionava. Ela colhia as folhas de couve-manteiga e as ajeitava cuidadosamente em maço, e com a faca amolada por meu pai, desenhava, de forma precisa, regulares pirâmides no alto do maço. O trabalho era lento, as tirinhas milimétricas. Uma chuva verde derramava-se na tigela e já não era possível distinguir o brilho da couve do brilho verde e orgulhoso dos olhos de minha mãe. E ela sabia que meu pai tinha parte naquele trabalho; então o perdão, inspirado pela cor, brotava.

Nas calorosas tardes de domingo, depois do almoço, a melancolia evaporava: culpa dos ritmos. O que se há de fazer? Nessas tardes o som era sempre outro: panelas, crianças, risos, abraços, netos... E as cordas não mais choravam, mas gargalhavam. A agilidade com que meu pai as tocava faziam-lhes cócegas certamente.

Naquela tarde, muito tempo havia se passado, eu já não era mais criança. Olhava para as couves no fundo do quintal e exercitava a lembrança quando minha mãe veio me mostrar um pano-de-prato dizendo:

– Olha o que eu ganhei!

Era lindo, de um branco tão puro que se podia enxergar o entrelaçar dos fios numa cumplicidade muito verdadeira e simples. Ao pé de si, rendas de crochê cheias de vãos de formatos tão variados quanto os pensamentos. Mas o que mais chamava atenção era estampa: pintada a mão, no centro do pano, havia uma flor resplandecentemente azul e multitonal. Azul era a cor predileta de minha mãe, que orgulhosa disse:

– Sabe quem me deu ?

Aquele que não sabe tocar, mas toca com maestria a corda-flor-narrativa-fibra da vida, pensei eu. E isso era consenso indiscutível.

Priscila Santos

domingo, 11 de março de 2012

Entre cravos e gérberas

 

Não havia saído para comprar flores. Olhou para si tão dentro da gordura que escorria do churrasco grego, do mijo que exalava debaixo do viaduto. Aquela moça duvidava das possibilidades de então, usava tênis, moleton e óculos escuros. Ela também pensava que amores de outrora ecoavam suspensos.

Desceu a rua muito dona de seu próprio bairro e, ao dar por isso, achou graça. Pessoas vestiam roupa de passeio e os moradores de rua perambulavam quase sem roupa no centro da metrópole. Dividia sua atenção entre o rés do chão e o pé direito dos prédios antigos da Avenida São João. Era inverno já.

Primeiro tinha que mandar consertar a máquina fotográfica. A loja ficava no nono andar. Claustrofóbico e antigo, o elevador se revelava hipnótico. Há algum tempo a dominava aquele impulso de perguntar o que lhe vinha à cabeça e a pergunta soou estranha à ascensorista. Já sonhei sim moça, duas vezes.

Se o conserto custasse mais de cem reais, seria melhor comprar outra máquina. Ao final das faturas, depósitos e transferências, sentiu vontade de gérberas. Mas havia também a latência da “tesoura do desejo de mudar”. Queria o corte que dissesse a si mesma quem realmente parecia ser. Entrou então na galeria do filho de Chuck Berry e tudo lhe soou demasiado.

Lembrou-se novamente das flores. Há algum tempo esta troca de delicadeza se rarefazia entre elas. Contudo, gérberas não havia, só vermelhos e brancos cravejavam insistentes. Observou nas pétalas as reentrâncias perfumadas, sofisticadas e obscenas, tentando ignorar aquele frio que lhe vinha do estômago como um mau presságio.

O cravo era a flor de uma história muito outra. Pensou em levar as rosas de todas as histórias, mas aquela era a sua e nela não admitia lugares comuns. Na nuca do rapaz a sua frente viu tatuado o ano 1982, lhe veio novamente a vontade da pergunta descabida, mas antes que as palavras saltassem da boca, o sinal abriu e o moço foi engolido pelas gentes.

Na calçada, sobre um improvisado ninho de amor, dormia um casal de moradores de rua, a mão dele desenhava na cintura da mulher o justo contorno da particularidade mundana, apesar de todos os que passavam. Talvez da náusea que lhe causava aquele homem que cagava quase indiferente entre os passantes nascesse uma flor, ainda que feia, para a história daquele casal.

Seu ouvido rompeu buzinas, motores e encontrou o som do sino da igreja que anunciava o inaudito que por ser também inaudível não fora notado por ninguém. Às vezes, alguém fazia o sinal da cruz como quem espanta um mosquito. Na porta da igreja, outra vez as rosas. E também lírios brancos que soavam como afronta aos delírios urbanos daquela moça.

Ao lado da banca, um homem dormia com seu cão. Ao terminar de observá-los, encontrou no olhar de uma senhora que passava o desejo de partilhar a palavra. Deram ainda mais alguns passos e depois da travessia do semáforo. Não é bonito ver um cão tão companheiro? Sim, pena que ele e o homem estejam relegados à mesma calçada, a senhora não acha?

Riu da besteira que disse, pois se lembrou da propaganda de turismo para cachorros que havia lido outro dia. Cachorros viajam, meninos também. Sentado nos degraus de uma loja fechada, o garoto prepara-se para a viagem. Estende a blusa sobre a cabeça e num passe de mágica faz o mundo desaparecer e parecer mais vivo graças à pedra fundamental.

No quarteirão de cima, a cabeça do PM, que nada sabe sobre o menino já bem distante, desenha o mundo num giro que, não fossem as limitações do pescoço, teria 360 graus. A bunda que chamava a atenção devia ser ainda mais quente, proporcionaria mais prazer que todo craque, que todo oxi, que todo espírito santo, amém.

Na porta da Universal, a lista de nomes pra corrente de orações. Deus está te chamando, minha filha. Diz pra ele que estou ocupada. Na cabana de papelão onde se abrigava um homem, ela lia: liquidado. Embaixo do viaduto, debaixo do cobertor, outro tentava tornar sua punheta menos pública. No gramado do Mc Donald’s outro esfregava seu pau na terra num rito religare.

Ainda era possível alguma flor? Já se aproximava o horário do rush e na Brigadeiro, quase nenhuma doçura a não ser a do cheiro da dama da noite que disputava o ar com o monóxido de carbono. Quase nenhuma dignidade, salvo a da negra, obesa e seminua que escrevia, enquanto aguardava suas calcinhas secarem nas grades da garagem do prédio residencial.

Escrevia com caneta Bic num caderno de espiral de arame, suas tetas invadiam as letras numa comunhão de carne e palavra que ninguém ouvia. Os carros estendiam um tapete de faróis. Arrancou então uma das folhas, amassou e a arremessou à guia. Não fosse por isso sua flor jamais a moça conheceria. Nem cravos, nem gérberas: uma margarida azul de palavras e linhas.

Priscila Santos

sábado, 31 de julho de 2010

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Ser digital

 

Pela manhã, no banho, a água lhe escorreu pelo corpo sem indicar caminho algum. Nenhuma combinação de roupas delineou a exata extensão de sua alma. Os dedos nas teclas desenharam telas, abriram e fecharam janelas. Era apenas o tempo: o dia seria quente, embora fosse inverno. Começaram as restituições de imposto de renda. Há linhas de financiamento de crédito para taxistas. O dólar ainda vale o dobro. Trânsito obstruído. Nova obstrução no intestino do vice presidente da repúplica. Senhora de si, selecionou e excluiu as piadas, correntes e publicidades. No MSN, um amigo diz que postou um novo texto e pergunta se ela já leu. Www.blog.... Não consegui registrar o endereço, ela já está diante da crônica do amigo. Posso somente lhes assegurar que era qualquer coisa sobre solidão. Esperançosas de tocar o Outro, digitais ensaiam esquisito balé sobre o touchpad. Acusado de corrupção o presidente do Senado cita Sêneca: “a injustiça só pode ser combatida com três coisas: o silêncio, a paciência e o tempo”. Lamento não ter conhecido a frase noutra circunstância. Agora o som de uma banda da banda que é umbanda/outra banda da banda é cristã, é kabala, é koorão. Outros querem ser tocados no Skype, Facebook, Orkut, Leskut,Twitter... Morrem mais seis pessoas no país vítimas da gripe H1N1. Off-line. Desligar.

Então, o café, o leite, o pão. Antes de sair, a fruta. O sumo cítrico irriga e apaga o digital. Abre a porta. Realidade só.

Priscila Santos

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Quase crônica

A difícil arte de ser mistério implica na brancura da névoa e na efemeridade do som. No olhar duro da verdade que derrete armadilhas, na cumplicididade entre fio e agulha.

Guardar mistérios implica sentir o gosto do silêncio e salivar profundezas. Implica também alguma intimidade com o inefável que se disfarça de clareza.

Guardar mistérios é segredo explodindo em palavra que só palavra quer ser. É também  pausa entre ser e estar para que se conheça a extensão das próprias asas.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

A bola

Um dia veio a notícia de que não morariam mais ali. O pai foi quem disse. A mãe incrédula não se continha de felicidade, pois não gostava dos vizinhos. Os irmãos ansiavam por um lugar melhor. A menina gostou da notícia mais por atmosfera alheia que por discernimento próprio. Não se incomodava com o barraco, gostava até. Gostava mesmo.

Acharam uma casa duas ruas para cima de onde ficava o barraco. A menina ficou frustrada, pois era a primeira vez que se mudava e ir assim para tão perto não tinha graça. Mesmo assim, gostou da casa, ela tinha banheiro com chuveiro, pia e vaso. Era a primeira vez que desfrutaria desse luxos. Na parede da cozinha havia um céu de flores azuis pintado no azulejo. Maravilhou-se.

Ajudou sua mãe a lavar a casa, escorregou no sabão e se machucou feio. Teve raiva, no chão áspero do barraco nunca escorregara. Aquele lugar poderia não ser bom. Encafifou.

Bom  foi o dia da mudança, todas as coisas sendo postas em caixas, as louças cuidadosamente embrulhadas em jornal. Todos os vizinhos bisbilhotavam lá fora. O caminhão já havia partido com os móveis. Agora, era preciso levar a pé as coisas miúdas e delicadas. Miúda a menina era, delicada era ela: a bola. Lembrou que deixara no fundo do quintal o gigante redondo e rosa que ganhou de alguém na barraca de pesca do parque de diversões. Correu. Ela estava lá, perto do pé de amora, ao lado do balanço. A menina ainda não sabia o que era mudança, mas quando abraçou a bola e olhou despedidamente para o quintal percebeu que esta palavra doía. Sofreu.

As irmãs chamaram e ela foi, com todo orgulho, agarrada à bola que mal lhe cabia nos braços. Mudar é preciso mesmo quando dói. O sol estava forte e deixava o plástico fininho ainda mais transparente: um grande holofote rosa iluminava o caminho à nova casa. Talvez lá fosse um bom lugar. Duvidou.

“Essa bola vai derreter”, disse uma das irmãs. Então, a menina acelerou o passo a fim de protegê-la dos impiedosos raios do sol. Chegando à nova casa, tratou logo de arranjar um cantinho seguro para a bola. Todas as crianças que tinham uma bola como a dela, já haviam se descuidado. Só a da menina permanecia intacta. Festejou.

Tudo foi sendo posto em seu lugar. A casa era grande para os móveis parcos. Havia mais espaço do que qualquer outra coisa. A abundância de ar. A menina, embora não tivesse mais idade para isso, dormiria em seu berço, no quarto de seus pais. Ao fim do dia a casa ainda não havia tomado feição familiar, mas era sua nova casa. Realizou.

O quarto em que dormiria parecia um pouco gelado, as paredes brancas não tinham o calor da madeira ferpenta do barraco. Venezianas azuis, piso marrom. Tudo gélido. Era hora de dormir e o sono não vinha, estava arredio, pois não sabia se teria porto seguro na casa nova. Era preciso aconchego para brincar com os sonhos, para brincar com a bola, seu talismã. Nem mesmo o véu que dava ao seu berço ares de realeza fez com que o sono reinasse. A menina pensou que os buraquinhos nele existentes poderia permitir que algo de imaterial invadisse seu reduto de sonhos. Sua mãe já havia, como de costume, lhe dado a benção e fechado delicadamente o véu branco com gotas azuis. Como os anjos não habitariam ali? Mas só por garantia, a mãe ainda lhe disse “Dorme com Deus, minha filha”. Seus olhos boiavam na escuridão, moveu sua pernas compridas e vagarosamente abriu a porta do quarto. Seus pais dormiam já. Foi tateando o desconhecido, sentia a lisa parede. Chegou até a sala, não sabia onde ficava o interruptor. Havia deixado a bola num dos quatro cantos daquele lugar. Uma fresta de lua entrava pela janela, ainda sem cortina. No barraco não havia janelas de vidro, nunca havia visto a luz da noite invadir a casa. Perturbou-se.

Mas graças à intrusa lua que crescia é que pode ver a bola translúcida com seu rosa imperativo: ela era todo o universo. Alcançou-a. Já não tinha mais o barulho duro dos primeiros dias, seu quicar era chocho já, percebeu isso quando , sem querer, a deixou cair. “Talvez ela logo se vá”, pensou. Como aconteceu com a das outras crianças. Viu a sombra do chacoalhar das folhas na parade, parecia que a noite sabia que ela estava fora do berço e aumentou a lua para denunciar a fuga. Tomou o caminho do quarto e, menos tateante e mais assustada, subiu no berço junto com a bola. Conquistou.

 

Agora conseguiria dormir. Com a bola enroscada às pernas, o berço ficava ainda mais apertado. Quando lhe comprariam uma cama? Estava quase perdida no onírico brinquedo quando a luz que estava na sala fez-se perceber no quarto. O vento uivava agonizante. “Será que vai chover?”. Agarrava-se a esta possiblidade para não concluir que”Esta casa é mal assombrada”. Diversas vezes ouviu suas irmãs contarem histórias de espíritos que voltam para assustar as pessoas. Não sabia muito bem o que eram espíritos, mas devia ser qualquer coisa como fumaças dançantes em forma de gente. Por um momento acreditou estar vendo uma fumacinha roxa que se movia vagarosamente, sem querer ser notada no intervalo silencioso dos tique-taques do despertador. Ninguém ao seu redor. Não sabia quem havia morado ali, morrido ali. Apavorou-se

Tirou a bola das pernas e a comprimiu com força contra seu rosto de modo que o plástico, em sua infinita maleabilidade, tornou-se menina. A luz da lua que entrava pelas frestas da veneziana fez com que a menina visse: a bola era toda espírito. Fumaças rosas dançavam dentro dela ao som de voz de mãe em canção de ninar. Enfim, alento. Sonhou.

De manhã, foi reprimida pela mãe “Deixa de ser porca, menina!Não tá vendo que essa bola é suja!” De fato, quando passou a mão no rosto sentiu a poeira grudada em sua pele, eram as marcas dos beijos que ganhou do espírito da bola. Gostou.

Com o tempo, a casa foi ganhando forma, feição e familiaridade. Os espaços, ocupados de vivência. Ainda faltava colocar muro numa das laterais. Na frente, a mãe plantou rosas rosas, vermelhas, amarelas, brancas e também dálias roxas, beijos multicolores, verdes folhagens, bola rosa. Seu tamanho já estava bastante reduzido,  sua forma era flácida como as do tempo desenhado em pele de gente. As rosas já estavam crescidas e agarrados ao caule, espinhos vigorosos exibiam-se. “Vamos brincar de bobinho?”, sugeriu maldosamente a irmã que arrancou a bola das mãos da menina e piscou para a outra irmã que, sem titubear, aceitou a brincadeira. O talismã passava de mão em mão sem nunca chegar à menina. Então, a bola que já tinha experimentado ser menina e espírito quis saber o que é ser flor. Olhos estatelados no ar. Paralisou.

A menina apertou os olhos com força para ter certeza do que via: a sábia bola se aconchegou sobre macios e coloridos beijos. Não fora atraída pela beleza traiçoeira das rosas. Ainda não era hora. Desacreditou.

Depois disso o medo tomou conta da menina, não podia contar apenas com a esperteza da bola. O mundo era muito perigoso. “Tata, coloca a minha bola em cima do guarda-roupa pra mim". Era o melhor a ser feito. Às vezes, sentava na beirada da cama de seus pais e ficava olhando… parecia mais velha, mais murcha, mais triste. Uma crosta de poeira fez morada em sua superfície. De vez em quando a menina pedia para que alguém pegasse a bola e brincava ali mesmo, longe dos perigos. Mas a brincadeira foi se tornando rara e desprovida de graça. A menina agora estava encantada com uma boneca que havia ganhado de sua irmã mais velha. Desmemoriou.

Num domingo, chegaram as primas, todas maiores que a menina e como a maioria das meninas maiores, elas eram chatas. Cismaram com a bola. “Vamos brincar de bobinho!”. O coração da menina apertou. “Não”. A mãe percebeu o atrito e  foi até o quarto ver o que acontecia. Subiu numa cadeira e jogou a bola no chão dizendo à filha que não fosse rediqueira e deixasse as primas brincar. “Bola não foi feita pra ficar guardada”, arrematou a mãe. Emburrou.

A menina esperou a mãe sair do quarto e pulou furiosamente em cima da prima que estava com a bola nas mãos, arrancou-lhe o tão estimado objeto e com ele se enfiou num vão entre a cama e o guarda roupa onde sempre se escondia. Abraçando a bola também com as pernas, a menina se deu conta de que crescera na mesma proporção que o brinquedo havia murchado.Tudo lhe sobrava. Esticou.

As primas puseram-se a fazer chacota da ira infantil: "Deixa o bebezinho agarrado na bola". "Olha parece uma rã!” A menina não se movia. Então, uma das primas ardilosamente: “Você sabe o que tem dentro dessa bola?” Silêncio. “Ela era bem maior antes, não era?” Porque tinha mais espíritos. Mas, como sua prima sabia? “Mais ou menos”. “Você sabe porque as bolas de parque são tão grandes?”. “Não”. “Elas têm um segredo”. “Que segredo?” “Dentro delas tem um filhinho.” Da bola só podia nascer filha. “Mentirosa!” “É verdade”. “Mentira, eu já vi as bolas das outras crianças furar e não tinha nada”.  “Ah! mas o segredo não aparece pra qualquer um, ele só aparece para quem sabe que ele existe.” “Ele aparece pra você?” “O da minha pareceu pra mim, o da sua vai parecer pra você, se você fizer uma coisa…” “O que?” “Você mesma tem que furar sua bola.” Milhares de cores se dissipariam no ar. Talvez a bola realmente tivesse uma filha. “Você pensa que me engana?” “Tá bom! não quer ver o segredo, não veja!” “Tá, mas como é que vou fazer?” A prima revirou a caixinha de costura que estava no quarto . “Toma, fura! Só funciona se for você mesma”. Então, temerosamente a menina furou. A explosão dos risos das primas encobriu o doloroso vento que saía da bola. “Rá, rá, rá, rá, rá, rá!” Não viu nascer a filha do ar. Chorou.

sábado, 19 de setembro de 2009

Miudeza de palavra


As palavras lançam clarões sobre o mundo, mas quando se é pequena, a luz cega:uma coisa não quer dizer só uma coisa, é preciso que o ar seja domado por dentes, língua e lábios para que o som se desenhe exato. É difícil se apropriar do mundo e fazer-se entender por ele. Junto com as palavras vêm as pessoas, ou será o contrário? Pessoas das quais ela nunca ouviu uma palavra sequer, eram um poço de mistério. Como aquele velhinho que mancava, pai do seu Artino, tinha um chapéu de feltro esverdeado e encardido, usava bengala e a única coisa que ela vira sair de sua boca era o repugnante movimento da dentadura. Certamente se tratava de um monstro. Será, que se algum dia o tivesse ouvido falar se convenceria do contrário?
Vó Audócia ela ouvira diversas vezes e duvidava um pouco da sua condição de bruxa. Talvez fosse má só às escondidas. Todas as crianças da rua gostavam da negra senhora que também usava dentadura, mas a dela não mexia dentro da boca. Às vezes, quando Audócia aparecia sem a dentadura, sua boca ficava murchinha e a menina chegava a se convencer de que ela não era bruxa coisa nenhuma. Pagava doce às crianças, pedia para lhe buscarem cigarro e dava-lhes o troco. Paçoquinhas, corações de abóbora e batata. Como era bom girar o baleiro de vidro, ouvir aquele ranger chacoalhante e colorido das balas e rodar a tampinha de alumínio embaçado pelos dedos sujos das crianças...Infinidade de doçuras.
Não, definitivamente, alguém capaz de proporcionar alegria tão singela não poderia ser bruxa. Mas é que vó Audócia usava sempre aquele roupão roxo em conjunto com aquelas chinelas de pano no mesmo tom, que lembrava as cores do velório de um vizinho, o caixão era de um roxo brilhante igual ao do roupão da vó Audócia. Além disso, a vó comia inçá. Está certo que era divertido caçar os bichinhos: Todas as crianças pegavam varetas compridas e finas e saquinhos plásticos, iam para um grande campo de futebol de terra vermelha, enfiavam as varetinhas nas casinhas dos bichinhos e voltavam com dezenas de insetos para o gosto da vó Audócia. Como recompensa, recebiam dinheiro para o doce.As cabeças dos insetos eram arrancadas e suas bundinhas eram fritas em óleo bem quente, o cheiro era insuportavelmente forte. Depois, misturadas com farinha de mandioca serviam ao paladar da vó que comia com as mãos. Comer aquelas formigas só podia ser coisa de bruxa! Sem contar que por diversas vezes vira no fundo do quintal da velha bonequinhos com agulhas espetadas.
Mas ela não falava como bruxa e as palavras, vou te contar, as palavras confundem a gente, principalmente gente miúda. Certa vez, um amigo de seu pai passava na rua perguntou a ela:
– Tudo bem?
E ela que estava verdadeiramente envolvida com uma questão prática que lhe atormentava respondeu com a sinceridade que convém a uma criança:
– Não, a calcinha da Xuxuca arrebentou?
O homem, ao vê-la com uma boneca na mão ignorou o problema. Ele não perguntara se estava tudo bem? Ela respondeu.
As palavras são realmente muito complicadas. As pessoas dizem o que não querem dizer e não dizem o que querem ou, pensam dizer uma coisa quando na verdade dizem outra. É muito difícil fazer-se entender.
Naquela noite estava com uma de suas irmãs na casa de uma vizinha que se chamava Mônica, na sua concepção este nome não podia pertencer à amiga de sua irmã, pois já pertencia a uma certa boneca dentuça muito famosa, mas parece que os adultos não entendiam isso. Para a menina, o fato da amiga da sua irmã ser dentuça não era mera coincidência.
Aliás, os nomes das pessoas são palavras que para as crianças trazem em si alguns mistérios, por exemplo, não tem o menor cabimento uma criança ter na infância o mesmo nome que terá quando adulto, pois para uma criança é muito claro que é incoerente um adulto se chamar Gisele ou Gustavo. Tamanho foi o susto da menina ao descobrir que seu nome a acompanharia pelo resto da vida. Não era possível, outros amiguinhos pensavam como ela, inclusive, brincavam de escolher os seus nomes para quando ficassem velhinhos, é óbvio que nomes como Ana ou Antonio combinam muito mais com “Dona” e “Seu”, porque afinal de contas, não era assim que seriam tratados?
Bem, voltando àquela noite na casa da Mônica (atenção, a amiga e não a boneca!), mais um nome veio se meter na vida da menina. Estava ela sentadinha num canto da cozinha medindo seu alcançe sobre o mundo, dizendo em voz baixa o nome de tudo que ali estavam: mesa, cadera, chão, tapete, amário e...
– Ô Tata, lá em cima como é que chama? Disse a menina apontando o dedo para o teto da casa.
A irmã olhou sem muito interesse, pois conversava sobre algum namoradinho com amiga adolescente, e secamente respondeu:
– Telhado.
Enquanto Mônica respondeu ao mesmo tempo:
– Teto.
– Telhado ou teto? - Indagou a menina.
– Os dois! Responderam as adolescentes.
E a menina continuou a listar: telhado, teto, alto, céu...
– Ô Tataaaa! Céu é teto ou telhado?
– Como assim menina?
– O nome do céu é teto ou telhado?
– Céu é céu, teto é teto e telhado é telhado!
Como ainda não dominava as palavras complicadíssimas, calou-se e continuou a listar: geladera, fugão, panela, pia, copo, plato, pato, não, não esse é bichinho...
– Tata, como é que fala o nome daquilo mesmo?
– Ai que saco! Daquilo o quê?
– Ali ó, em cima da pia, aquilo que a gente come nele.
– Prato.
– Ah! Prato.
E continuou: janela, tornera, póta, gatu...
– E aquele bichinho ali em cima da geladera?
– Mônica, fala com ela que eu já tô perdendo a paciência!
– É um pingüim, pequena. Agora brinca aí quietinha pra gente poder conversar, tá bom?
Ao lado do pingüim a menina descobriu algo, coberto por uma capinha rosa xadrez. Levantou-se, aproximou-se da geladeira e começou a pensar no que seria aquilo, será que era um outro pingüim? Ou seria algo que sentia frio, pois estava coberto, ou estaria coberto porque ninguém podia ver? Certamente, se perguntasse à sua irmã novamente levaria uns petelecos. Então, arrastou vagarosamente a cadeira, subiu com alguma dificuldade e quando suas mãozinhas tentavam tocar o misterioso objeto. A mãe de Mônica chegou na cozinha e segurou a menina em seu colo dizendo:
– O que vocês duas estão fazendo aqui que não tomam conta da menina? Quase que ela despenca no chão!
As moças olharam surpresas e não disseram nada. Enquanto a menina insistia no seu intento:
– Dona Cida, como que chama o nome daquilo ali ó?
– Onde?
– Ali, em cima da geladera.
– Eu já falei que é pingüim. Interferiu Mônica.
– Não, o outro!
– Qual?
– Ali, de ropinha cor de rosa.
– Ah! É o LIQUIDIFICADOR! Agora vai brincar e não suba mais em nada porque é perigoso. E vocês, fiquem de olho nela que eu vou ver a novela.
Ninguém tirou a capinha para que ela pudesse ver. A menina sentou no mesmo cantinho e ficou tentando decifrar o que seria aquele objeto de nome tão difícil e por várias vezes tentou repetir dizer: liquidor, ficador, quificador...
Foi com sua irmã para casa, dormiu e acordou com aquela palavra na cabeça. Brincou, comeu e aquela palavra não lhe saia da cabeça. Vó Audócia pediu para ela ir lhe comprar cigarros. A menina ganhou o troco como de costume, mas antes de ir comprar doces não resistiu e perguntou:
- Vó, o que é quificador?
- O coração, minha filha, o coração é que fica dor.