Os consensos têm seus graus de consensuação, se é que isto existe. Está vendo? Acabo de chegar num consenso a respeito da fibra primeira que tecerá essa narrativa. Escrever é consenso dolorosamente solitário, as palavras sangram.
Falava do consenso que as pessoas possuem sobre as coisas. As flores, por exemplo, estão consensualmente ligadas à delicadeza, ao bom tom, ao amor, à beleza ...
Para ele não.
Curioso não associarmos instantaneamente flor à morte. Inútil tentativa de perfumar a dor.
Por isso nunca dera flores a mulher, não combinava com o jeito rústico que ele herdara de seus pais primeiros: sol e terra. As pétalas talvez estranhassem a dureza de suas mãos e se sentindo feridas, defenderiam-se, murchando, timidamente. E ele, encontraria na lenta e silenciosa defesa da flor a evidência de que suas mãos não sabiam tocar.
– Fulô é coisa pra gente morta! Tu ganhô fulô? Mas tu não morreu ainda? – dizia ele.
Se para flores seus dedos não serviam, do som eles eram escravos. As cordas de aço, domadas por troncos grossos, curtos, negros e calejados: eis os dedos de meu pai.
Se não era possível a pétala, cordas com delicadeza de corte não feriam seus cabeçudos dedos. Perfume invade a gente pela lembrança; som, pela alma. Cheia de alma a casa ficava quando choravam as cordas lá no fundo do quintal.
Talvez a respeito da música haja menos consenso do que a respeito da flor. Culpa dos ritmos que nos permitem associar música ora à tristeza, ora à alegria. Contudo, não é hábito haver música em velórios.
Ia para o fundo do quintal sempre que brigavam. Minha mãe, que não era dada ao falar, esfregava-lhe na cara palavras duras, o dedo em riste apontava diretamente para a falta de tato de meu pai. O dedo na ferida.
Então, só restava a ele o melancólico violão. Tocava para as couves e quiabos, parecia até que estava pedindo para a horta tão adorada por minha mãe que intercedesse por ele. Às vezes, eu achava que funcionava. Ela colhia as folhas de couve-manteiga e as ajeitava cuidadosamente em maço, e com a faca amolada por meu pai, desenhava, de forma precisa, regulares pirâmides no alto do maço. O trabalho era lento, as tirinhas milimétricas. Uma chuva verde derramava-se na tigela e já não era possível distinguir o brilho da couve do brilho verde e orgulhoso dos olhos de minha mãe. E ela sabia que meu pai tinha parte naquele trabalho; então o perdão, inspirado pela cor, brotava.
Nas calorosas tardes de domingo, depois do almoço, a melancolia evaporava: culpa dos ritmos. O que se há de fazer? Nessas tardes o som era sempre outro: panelas, crianças, risos, abraços, netos... E as cordas não mais choravam, mas gargalhavam. A agilidade com que meu pai as tocava faziam-lhes cócegas certamente.
Naquela tarde, muito tempo havia se passado, eu já não era mais criança. Olhava para as couves no fundo do quintal e exercitava a lembrança quando minha mãe veio me mostrar um pano-de-prato dizendo:
– Olha o que eu ganhei!
Era lindo, de um branco tão puro que se podia enxergar o entrelaçar dos fios numa cumplicidade muito verdadeira e simples. Ao pé de si, rendas de crochê cheias de vãos de formatos tão variados quanto os pensamentos. Mas o que mais chamava atenção era estampa: pintada a mão, no centro do pano, havia uma flor resplandecentemente azul e multitonal. Azul era a cor predileta de minha mãe, que orgulhosa disse:
– Sabe quem me deu ?
Aquele que não sabe tocar, mas toca com maestria a corda-flor-narrativa-fibra da vida, pensei eu. E isso era consenso indiscutível.
Priscila Santos
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