Um dia veio a notícia de que não morariam mais ali. O pai foi quem disse. A mãe incrédula não se continha de felicidade, pois não gostava dos vizinhos. Os irmãos ansiavam por um lugar melhor. A menina gostou da notícia mais por atmosfera alheia que por discernimento próprio. Não se incomodava com o barraco, gostava até. Gostava mesmo.
Acharam uma casa duas ruas para cima de onde ficava o barraco. A menina ficou frustrada, pois era a primeira vez que se mudava e ir assim para tão perto não tinha graça. Mesmo assim, gostou da casa, ela tinha banheiro com chuveiro, pia e vaso. Era a primeira vez que desfrutaria desse luxos. Na parede da cozinha havia um céu de flores azuis pintado no azulejo. Maravilhou-se.
Ajudou sua mãe a lavar a casa, escorregou no sabão e se machucou feio. Teve raiva, no chão áspero do barraco nunca escorregara. Aquele lugar poderia não ser bom. Encafifou.
Bom foi o dia da mudança, todas as coisas sendo postas em caixas, as louças cuidadosamente embrulhadas em jornal. Todos os vizinhos bisbilhotavam lá fora. O caminhão já havia partido com os móveis. Agora, era preciso levar a pé as coisas miúdas e delicadas. Miúda a menina era, delicada era ela: a bola. Lembrou que deixara no fundo do quintal o gigante redondo e rosa que ganhou de alguém na barraca de pesca do parque de diversões. Correu. Ela estava lá, perto do pé de amora, ao lado do balanço. A menina ainda não sabia o que era mudança, mas quando abraçou a bola e olhou despedidamente para o quintal percebeu que esta palavra doía. Sofreu.
As irmãs chamaram e ela foi, com todo orgulho, agarrada à bola que mal lhe cabia nos braços. Mudar é preciso mesmo quando dói. O sol estava forte e deixava o plástico fininho ainda mais transparente: um grande holofote rosa iluminava o caminho à nova casa. Talvez lá fosse um bom lugar. Duvidou.
“Essa bola vai derreter”, disse uma das irmãs. Então, a menina acelerou o passo a fim de protegê-la dos impiedosos raios do sol. Chegando à nova casa, tratou logo de arranjar um cantinho seguro para a bola. Todas as crianças que tinham uma bola como a dela, já haviam se descuidado. Só a da menina permanecia intacta. Festejou.
Tudo foi sendo posto em seu lugar. A casa era grande para os móveis parcos. Havia mais espaço do que qualquer outra coisa. A abundância de ar. A menina, embora não tivesse mais idade para isso, dormiria em seu berço, no quarto de seus pais. Ao fim do dia a casa ainda não havia tomado feição familiar, mas era sua nova casa. Realizou.
O quarto em que dormiria parecia um pouco gelado, as paredes brancas não tinham o calor da madeira ferpenta do barraco. Venezianas azuis, piso marrom. Tudo gélido. Era hora de dormir e o sono não vinha, estava arredio, pois não sabia se teria porto seguro na casa nova. Era preciso aconchego para brincar com os sonhos, para brincar com a bola, seu talismã. Nem mesmo o véu que dava ao seu berço ares de realeza fez com que o sono reinasse. A menina pensou que os buraquinhos nele existentes poderia permitir que algo de imaterial invadisse seu reduto de sonhos. Sua mãe já havia, como de costume, lhe dado a benção e fechado delicadamente o véu branco com gotas azuis. Como os anjos não habitariam ali? Mas só por garantia, a mãe ainda lhe disse “Dorme com Deus, minha filha”. Seus olhos boiavam na escuridão, moveu sua pernas compridas e vagarosamente abriu a porta do quarto. Seus pais dormiam já. Foi tateando o desconhecido, sentia a lisa parede. Chegou até a sala, não sabia onde ficava o interruptor. Havia deixado a bola num dos quatro cantos daquele lugar. Uma fresta de lua entrava pela janela, ainda sem cortina. No barraco não havia janelas de vidro, nunca havia visto a luz da noite invadir a casa. Perturbou-se.
Mas graças à intrusa lua que crescia é que pode ver a bola translúcida com seu rosa imperativo: ela era todo o universo. Alcançou-a. Já não tinha mais o barulho duro dos primeiros dias, seu quicar era chocho já, percebeu isso quando , sem querer, a deixou cair. “Talvez ela logo se vá”, pensou. Como aconteceu com a das outras crianças. Viu a sombra do chacoalhar das folhas na parade, parecia que a noite sabia que ela estava fora do berço e aumentou a lua para denunciar a fuga. Tomou o caminho do quarto e, menos tateante e mais assustada, subiu no berço junto com a bola. Conquistou.
Agora conseguiria dormir. Com a bola enroscada às pernas, o berço ficava ainda mais apertado. Quando lhe comprariam uma cama? Estava quase perdida no onírico brinquedo quando a luz que estava na sala fez-se perceber no quarto. O vento uivava agonizante. “Será que vai chover?”. Agarrava-se a esta possiblidade para não concluir que”Esta casa é mal assombrada”. Diversas vezes ouviu suas irmãs contarem histórias de espíritos que voltam para assustar as pessoas. Não sabia muito bem o que eram espíritos, mas devia ser qualquer coisa como fumaças dançantes em forma de gente. Por um momento acreditou estar vendo uma fumacinha roxa que se movia vagarosamente, sem querer ser notada no intervalo silencioso dos tique-taques do despertador. Ninguém ao seu redor. Não sabia quem havia morado ali, morrido ali. Apavorou-se
Tirou a bola das pernas e a comprimiu com força contra seu rosto de modo que o plástico, em sua infinita maleabilidade, tornou-se menina. A luz da lua que entrava pelas frestas da veneziana fez com que a menina visse: a bola era toda espírito. Fumaças rosas dançavam dentro dela ao som de voz de mãe em canção de ninar. Enfim, alento. Sonhou.
De manhã, foi reprimida pela mãe “Deixa de ser porca, menina!Não tá vendo que essa bola é suja!” De fato, quando passou a mão no rosto sentiu a poeira grudada em sua pele, eram as marcas dos beijos que ganhou do espírito da bola. Gostou.
Com o tempo, a casa foi ganhando forma, feição e familiaridade. Os espaços, ocupados de vivência. Ainda faltava colocar muro numa das laterais. Na frente, a mãe plantou rosas rosas, vermelhas, amarelas, brancas e também dálias roxas, beijos multicolores, verdes folhagens, bola rosa. Seu tamanho já estava bastante reduzido, sua forma era flácida como as do tempo desenhado em pele de gente. As rosas já estavam crescidas e agarrados ao caule, espinhos vigorosos exibiam-se. “Vamos brincar de bobinho?”, sugeriu maldosamente a irmã que arrancou a bola das mãos da menina e piscou para a outra irmã que, sem titubear, aceitou a brincadeira. O talismã passava de mão em mão sem nunca chegar à menina. Então, a bola que já tinha experimentado ser menina e espírito quis saber o que é ser flor. Olhos estatelados no ar. Paralisou.
A menina apertou os olhos com força para ter certeza do que via: a sábia bola se aconchegou sobre macios e coloridos beijos. Não fora atraída pela beleza traiçoeira das rosas. Ainda não era hora. Desacreditou.
Depois disso o medo tomou conta da menina, não podia contar apenas com a esperteza da bola. O mundo era muito perigoso. “Tata, coloca a minha bola em cima do guarda-roupa pra mim". Era o melhor a ser feito. Às vezes, sentava na beirada da cama de seus pais e ficava olhando… parecia mais velha, mais murcha, mais triste. Uma crosta de poeira fez morada em sua superfície. De vez em quando a menina pedia para que alguém pegasse a bola e brincava ali mesmo, longe dos perigos. Mas a brincadeira foi se tornando rara e desprovida de graça. A menina agora estava encantada com uma boneca que havia ganhado de sua irmã mais velha. Desmemoriou.
Num domingo, chegaram as primas, todas maiores que a menina e como a maioria das meninas maiores, elas eram chatas. Cismaram com a bola. “Vamos brincar de bobinho!”. O coração da menina apertou. “Não”. A mãe percebeu o atrito e foi até o quarto ver o que acontecia. Subiu numa cadeira e jogou a bola no chão dizendo à filha que não fosse rediqueira e deixasse as primas brincar. “Bola não foi feita pra ficar guardada”, arrematou a mãe. Emburrou.
A menina esperou a mãe sair do quarto e pulou furiosamente em cima da prima que estava com a bola nas mãos, arrancou-lhe o tão estimado objeto e com ele se enfiou num vão entre a cama e o guarda roupa onde sempre se escondia. Abraçando a bola também com as pernas, a menina se deu conta de que crescera na mesma proporção que o brinquedo havia murchado.Tudo lhe sobrava. Esticou.
As primas puseram-se a fazer chacota da ira infantil: "Deixa o bebezinho agarrado na bola". "Olha parece uma rã!” A menina não se movia. Então, uma das primas ardilosamente: “Você sabe o que tem dentro dessa bola?” Silêncio. “Ela era bem maior antes, não era?” Porque tinha mais espíritos. Mas, como sua prima sabia? “Mais ou menos”. “Você sabe porque as bolas de parque são tão grandes?”. “Não”. “Elas têm um segredo”. “Que segredo?” “Dentro delas tem um filhinho.” Da bola só podia nascer filha. “Mentirosa!” “É verdade”. “Mentira, eu já vi as bolas das outras crianças furar e não tinha nada”. “Ah! mas o segredo não aparece pra qualquer um, ele só aparece para quem sabe que ele existe.” “Ele aparece pra você?” “O da minha pareceu pra mim, o da sua vai parecer pra você, se você fizer uma coisa…” “O que?” “Você mesma tem que furar sua bola.” Milhares de cores se dissipariam no ar. Talvez a bola realmente tivesse uma filha. “Você pensa que me engana?” “Tá bom! não quer ver o segredo, não veja!” “Tá, mas como é que vou fazer?” A prima revirou a caixinha de costura que estava no quarto . “Toma, fura! Só funciona se for você mesma”. Então, temerosamente a menina furou. A explosão dos risos das primas encobriu o doloroso vento que saía da bola. “Rá, rá, rá, rá, rá, rá!” Não viu nascer a filha do ar. Chorou.
Incrível. Só o seu texto pra me fazer temer uma agulha...
ResponderExcluirbeijao!
Se eu visse a mesma cena na vida real, consideraria tudo como infantilidades próprias de criança, mas do modo como você contou , diria que essa menina é muito mais do que uma criança. Arrisco afirmar que quando crescer terá muitos pensamentos interessantes e será dona de uma infinidade de questões que muito poucas pessoas, por falta de sensibilidade, compreenderão. Sem dúvidas quero conhecê-la no futuro. Parabéns pelo conto, simples, sutil, profundo!
ResponderExcluir