Areia, mar e Ana
Todos os dias, ao cair da tarde, Ana saía de seu trabalho, pegava o ônibus, descia alguns pontos antes de onde ficava seu pequeno apartamento e ia à praia. Descalçava os sapatos e pisava na areia como quem planta a si mesmo no solo da razão.
A areia sentia a existência de Ana pousar sobre seus grãos que uniam-se formando a imagem exata do espírito da moça. Não havia cubos, impressão ou expressão nos quadros que se formavam. Eram dança de grãos, apenas. Minúcia de movimento que, às vezes, delineava palavras. O mar vinha com suas ondas e abraçava os desenhos e devorava as palavras. Era assim que ele ficava sabendo dos segredos daquela mulher.
Ana não sabia disso. Então, sentava de frente pro mar e lhe falava que o trabalho lhe submergia a alma, que as flores dos vasos de sua sacada insistiam em agarrar-se à terra , que a dor enternecia em seu peito por causa do amor ... Em silêncio, falava-lhe tudo. Ana definitivamente não sabia que o mar, sempre tão ocupado em cantar seus próprios lamentos, não ouvia as vozes provindas dos corações humanos. A areia, fiel intercessora, é quem transmitia ao mar as confidências de Ana.
Um dia, o tormento de Ana desafiou a areia .Os grãos beliscavam-se odiosamente entre si de modo a descompassar espaço e tempo. Assim, as ondas-retinas do mar não conseguiam decifrar as imagens. Ana se desiludira e decidiu entregar-se ao mar, faria dele seu único amor. Queria com ele partilhar todos os momentos do seu dia. Desejou que ele fosse só seu.Então, na tarde seguinte, Ana voltou à praia e trouxe consigo um vidro transparente onde colocou o mar e o levou para casa, para sempre. Andava com o vidro na bolsa, levava-o a todos os lugares, dormia com ele. Com ele fazia amor. Nunca mais voltou à praia, não queria dividir seu mar com desconhecidos, não queria dividí-lo sequer com o sol.
Com o tempo a areia sentiu falta de Ana. Descobriu que gostava de saber seus segredos. Sentia falta das carícias que lhe fazia a sola de seus pés, do molde macio de suas nádegas, de seu corpo inteiro quando em momentos de entrega Ana se deitava.
Num rompante de fúria, a areia odiou o mar. Sempre ele nas canções, nas pinturas, nos poemas, nas contemplações. Sempre o mar. Teve vontade de ser tempestade e num abrupto movimento desaparecer, todos perceberiam que não é possível aconchegar-se por sobre o mar inquieto. Mas, impotente e resignada, calou sua fúria e sofreu a falta de Ana.
Quando já não havia mais esperanças, Ana voltou. Não era fim de tarde, mas madrugada. A praia estava deserta. A moça devolveu o mar ao mar, deitou-se nua por sobre a areia e uma onda veio cobrir as amantes que se fundiram em gozo indissolúvel.
Priscila Santos
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