A barata
Era muito cedo para estar dentro do ônibus. Há algo de errado com o funcionamento do mundo. São cinco horas da manhã, “é cedo ainda”. “Só mais cinco minutinhos”, é tempo suficiente para toda uma vida.“Só mais cinco minutinhos e uma falta”.É preciso ter uma boa desculpa para uma falta, é preciso não faltar nunca na vida, é preciso estar com ela todos os dias. Os atrasos também não são permitidos, mas tinham acontecido na semana passada, na retrasada e na outra também.
Os minutos multiplicaram-se. Num salto levanta-se, “não vai dar tempo de tomar banho”. Um banho não limparia o que era preciso, nem o tempo o faria. O tempo possui as faltas que a vida não aceita. O ônibus está vazio: senta-se. E gostando da idéia, as pálpebras superiores sentam-se sobre as inferiores. Não há tempo pra sonhar, mas o sonho não tem tempo e vem: um letreiro amarelo faz doer os olhos, as letras movimentam-se impedindo que se leia. O amarelo do sinal e, logo depois, vermelho. Os carros param e a barata sai do saco de lixo que está junto ao ponto de ônibus, movimenta-se com dificuldade, porém vitoriosa por ter se livrado do aperto fétido e escuro do plástico imundo. Duas de suas pernas estão debilitadas, assim como as da moça que impossibilitada de evitar o atraso observa a barata. Desce vagarosamente do saco, da guia e ganha a rua que é grande demais para uma barata manca. Mas os tempos fundem-se no espaço da barata, da moça, do sinal. Cada pedrinha que constitui a irregularidade do asfalto é, para ela, um obstáculo intransponível. Praticamente só seu lado esquerdo se move, arrasta-se silenciosamente no universo das horas. 
O trajeto é curto e o sonho vai. Num salto levanta-se e não é amarelo, vermelho é o sinal “droga”. Olha impaciente, para a direção de onde virá o próximo ônibus do trajeto infindável. Quanta impotência. O letreiro amarelo cruza dura e nitidamente, ela pôde ler o destino que acabara de perder “droga!”. 
Desce a passos lentos, atravessa a movimentada avenida, chega ao ponto de ônibus “malditos cinco minutinhos”. Olha para o chão e lá está a barata, a grande culpada por todos os desacertos do tempo. A barata exibe suas pernas mancas como troféus, como se dissesse: “vou chegar ao meu destino há tempo”. Desesperada a moça torce para que o sinal abra, não era possível que aquele ser asqueroso conseguisse chegar vivo até o outro lado da avenida. Pensou em acabar com sua inimiga com um pisão, assim ela saberia o quanto as pernas humanas eram livres, e móveis e capazes de findar aquele insulto com um simples gesto. Mas o sinal poderia abrir e talvez não desse tempo de voltar para a calçada, pois a barata já estava quase no meio da rua. Morrer ao tentar matar uma barata, morrer... Que parte do seu corpo o carro atingiria primeiro? Em que momento ficaria inconsciente? Imaginou seus olhos encontrando o olhar assustado do motorista e se fechando na mesma velocidade em que um fio de sangue escorreria pelo para-brisa para sempre. Não, um carro não a mataria. O sinal não estava tão longe, a velocidade não seria grande, daria tempo de o motorista frear. Já a morte da barata, era certa. Sua insignificância não faria nenhum carro parar. A gosma de sua existência ficaria grudada na borracha preta e veloz. 
Mas a desgraçada já passava da metade da pista que constituía uma das mãos da avenida e nada do tempo passar. Cada centímetro percorrido era uma afronta à moça cujo corpo era açoitado pelo ácido fio do tempo, “ela não vai conseguir, não vai conseguir...”. Olho no sinal, no carro, na roda, embreagem, câmbio, acelerador, faixa, pés, fins. Mas nada, só a imobilidade e a possibilidade de que ela chegue. Está se aproximando da guia. Ah! Certamente ela não poderá transpor o espelho que rascunha sua infinita insignificância. 
Há uma ilha que divide as duas mãos da avenida, nela estão alguns sacos de lixo apoiados em pequenas árvores. Quantas baratas poderiam sair de dentro deles, três, sete, mil, todas a se mexer num brilho farfalhante de asas que nos esfregaria nas fuças a grande ilusão do poder. Não, ela é uma só e, no entanto, faz doer como se fosse mil. Sua minudência só faz com que pareça cada vez maior. Ainda agora a manca maldita escalou toda a guia, alcançou a ilha e fez-se perder de vista. A moça desacredita, estica o pescoço, chega até mais perto da rua e assim que coloca os pés no asfalto o sinal abre, “se eu correr ainda consigo chegar até o outro lado”. Traída por seus pés, encontra-se de novo na calçada. Agora é realmente impossível saber.
“Foi sorte, da próxima ela não passa”. Estava já decidida a esperar o sinal fechar outra vez para ir até o meio da avenida assistir ao espetáculo do esmagamento que aconteceria na tentativa de atravessar a próxima mão. “Foi sorte, pura sorte”, repetia despeitada. Como pode ser correto que baratas tenham sorte? A toda sorte de gente falta sorte. Para ela só tinha faltado a de acordar cinco minutinhos antes. Quando é antes? Antes é sempre tarde demais.
Antes que o sinal feche, ela tenta atravessar, quase daria tempo. Recua. Não daria àquele inseto o gosto de vê-la estendida no meio da rua. É melhor ter calma quando a coragem surge imperiosa. A sucessão de atos corajosos leva à loucura. É preciso ter coragem para levantar da cama, e pegar o ônibus, e encarar o sol, o vento, o frio, os olhos de toda gente te pedindo calma para acreditar que não há nada de errado no fato de tudo isso receber o nome de vida. 
Finalmente, o vermelho. Que cor seria o sangue da barata? Como pode ser sangue de barata, se ela atravessa avenidas furiosamente? A passos lentos a moça caminha até a ilha. Já não tem pressa, desfruta a sensação de possuir uma rua. Todos os carros parados, só por sua causa, por seu desejo poderiam matá-la. Pé após pé, as pedrinhas irregulares do asfalto passam desapercebidas sob a majestade humana. Viva às tecnologias que promovem a diminuição de impacto! Viva ao formato anatômico! Viva aos tênis com amortecedores que podem ser adquiridos pela bagatela de várias manhãs com sono! O pagamento é facilitado, pode ser feito em uma, duas, três vezes... a fim de que se prolonguem as manhãs  sem sonho. Mas como recompensa: as pedrinhas da irregularidade asfáltica passam desapercebidas. 
Para na ilha ao lado dos sacos de lixo. Procura a barata, não a encontra. Talvez tivesse desistido de atravessar tão inconseqüentemente e resolveu andar pela ilha até a faixa de pedestres para que fossem maiores as chances de sucesso. As baratas estão mais habituadas a fugir de pés, antes eles que as rodas. “Seriam sábias as bichinhas?”. Avaliou o despropósito de seus pensamentos e continuou a procurar. “Onde se enfiou a maldita? Não tenho todo tempo do mundo”. Agradou-lhe a idéia de “todo o tempo do mundo”, afinal que raios seria isso? Ninguém é capaz de dimensionar “todo o tempo do mundo”, é tempo que não cabe em alguém. Imaginou a barata chegando a si empurrando um pacote de presente como um laço rosado e dizendo: “Moça, toma pra você ‘todo o tempo do mundo’”. Mais despropósitos.
“Achei você!”.  Ela estava tentando descer a guia, arrastava-se na verticalidade que é domínio das baratas. Estivesse ela na horizontal e o pisão seria imediato. A moça temeu parecer ridícula tirando o tênis para executar seu propósito. Em casa, quando um inseto desses sobe pelas paredes, alguém desprovido do asco que ele costumeiramente  causa, saca logo a arma certeira para matá-lo. Tinha asco, mas também tinha ódio. Ia tirar o tênis.Olhou em volta para verificar se alguém a observava e viu o próximo ônibus. Tudo aquilo lhe parecia muito estranho já que o próximo ônibus só viria daqui a meia hora, meia barata ou meia vida.Os ponteiros dos velocímetros marcavam impiedosamente os cinco minutos. Daria tempo de matar a barata, correr para o ponto e não faltar, tudo estaria mediocremente em seu devido lugar: a barata na morte e a moça no ônibus.
Com o tênis na mão dá o primeiro golpe.A barata se enfia numa fenda existente na guia e sai ilesa. “Tudo culpa sua”, grita a moça que desesperada procura uma vareta ou qualquer coisa pontiaguda capaz de tirar a barata daquela fortaleza. Abre um dos sacos de lixo e caça obstinadamente a arma eficaz. Sente um nó na garganta “malditos cinco minutinhos”. Chora. Encontra um palito de churrasco, volta-se para a barata e esta já ganhou a rua. O ônibus já passou pelo ponto. O carro também já passou por cima da barata bem no meio da rua. A moça passou a mão no saco de lixo, recostou a cabeça sobre ele, olhou para a pequena mancha que a barata deixou no asfalto e bocejou sussurrando “só mais cinco minutinhos”.
Priscila Santos
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