quarta-feira, 29 de abril de 2009

Linha verde

Seu olhar caminhava entre as pernas embaralhadas em jeans predominante. Uns pés conformavam-se nos tênis, outros explodiam nos sapatos. Chegou a pensar que a mulher do sapato verde tinha alguma deformação nos dedos, pois o bicudo calçado empurrava o dedo correspondente ao anelar . Nunca me ocorreu chamar os dedos dos pés pelo mesmo nome dos das mãos. O caso era que o recorte redondo do sapato verde dava ao dedo um aspecto aleijado, como se o corpo todo o colocasse para dentro enquanto o verde curvilíneo o expulsava. O verde retilíneo também expulsa. Todos os dias. Cinco milhões de pessoas. Então, a mulher não tinha cinco, mas cinco milhões de dedos dentro do sapato. Quando se está embaixo da terra não há muito que olhar.Se estamos em pé, a velocidade do nada causa-nos vertigem.De tempos em tempos um sinal e uma parada: mais gente. Afinal são cinco milhões de dedos. Quando se está sentado pode-se ver nos pés a deselegância combinada do sapato boneca com a soquete branca; imaginar o contorno e consistência exatos da nádega negra que se exibe à altura dos olhos.O chão é ainda mais chão quando se está na linha verde. Talvez por isso acreditou ter chegado ao chão de si própria e perguntou o que havia lá. Queria chão, não subsolo.A maquinaria férrea rangia n’alma emprestando-lhe a voz que o mundo sorrateiramente vinha lhe roubando. Ao condutor também faltava voz, às vezes. Nova parada: mais gente. O ar morno e úmido de dentro da lata resfria-se com o desencontrar das portas. Vírus proliferam-se, homens digladiam-se em nome do mover quando o desejo mais pungente é parar, apenas. Movem- se braços e lábios em diálogos inaudíveis. Movem-se involuntariamente os cabelos e tecidos com o sopro veloz do hermético ferro em movimento. Move-se o sapato verde em direção à linha azul. Movem-se enfim as pálpebras revelando-se em consistência de sonho metálico. Estridente, o freio arranca-lhe do sono intenso e diminuto. Ao fundo, confundido ao preto emborrachado, sonha o cão. Não havia percebido o animal até então. Seria permitida a inusitada presença? Carregava no pelo o brilho de quem ignora sem culpa as questões humanas. Parecia até que nem com as questões caninas se importava. Ateve por momentânea eternidade seus olhos no cão. Preocupou-se em saber se não estariam sobre ela outros olhos a inquirir observação tão direta.O que estaria a pensar o dono do cão? Seus pés eram daqueles que explodiam nos sapatos. Não eram verdes, mas pretos como o chão, a calça e o cão. Sua camisa exibia um branco imaculadamente engomado.Talvez por isso em princípio tenha pensado que o cão era apenas uma pasta preta típica dos homens que assim se vestem na linha verde. Este, contudo, não exibia o nó na garganta. Não era possível decodificar o pensar do dono do cão, pois as legendas de seus pensamentos boiavam num branco ainda mais claro que o da camisa. Todos o podiam observar sem medo, visto que seus olhos por não refletir, também não refratavam. Vez ou outra piscavam ensaiando o sono dos cegos. Ela olhou ao redor de si. Nem todos olhavam, mas os que o faziam oscilavam entre a inexplicável simpatia pelo cachorro e a compaixão hipócrita pelo cego. É sempre possível cavar mais fundo.O frêmito do vagão ecoa liquidamente. A erosão é lenta e quando menos se espera o buraco lá está, com seus olhos vorazes a nos engolir. E vomitar : Estação Terminal Vila Madalena.

Priscila Santos

Um comentário:

  1. Tenho saudade de você. De sentir essa prosa ao invés de somente lê-la.
    Seus contos são de uma urbanidade que sufoca. Sinto-me apertada entre uma estação e outra enquanto penso em como seria bom viajar pelo bondinho em que Ana, em um flagrante, mira o cego. Tenho dessas de viajar quando viajo. Sua palavra, transporte, leva-me para tão longe daqui e tão perto daí. Esse coração cidadão de CPF inválido.
    (Chego ao Brasil em menos de um mês. Por favor, arrume um jeito de me encontrar!)

    Cris Lira.
    (Uma certa poeta que sempre que vê um instrumento imenso de apoio e música, lembra-se de você naquela tarde em que furtamos um instante daquela menina lágrima a caminho da sua casa. Lembra?
    Lembro (eu).

    Continue a escrever sempre. Vivo com fome!

    ResponderExcluir