domingo, 2 de agosto de 2009

O céu

Ariana estava no céu. A escada era alta demais e por mais que a menina chamasse:
- Vem brincar, vem!
Ariana não respondia, seus gritos desciam os degraus chegando ao ouvido da menina que não entendia porque a amiga se recusava a brincar.
Por várias vezes se esconderam embaixo da escada, eram mães das bonecas, mostravam a língua para as meninas chatas da rua... Mas Ariana não queria nada. Sua avó lhe ofereceu um copo de água com açúcar, ela também não quis. A menina ficou com vontade, mesmo imersa em sua preocupação teve tempo de imaginar como devia ser gostoso água com açúcar. Ariana recusou e permaneceu ali, sentada no alto da escada gritando dolorosamente.
A menina teve medo de se aproximar, o jeito da amiga a deixava assustada. Sentou-se na outra extremidade da escada e ficou tentando achar alguma coisa que fosse capaz de atrair Ariana e fazê-la feliz outra vez, como nas tardes em que as duas rodavam no balanço até ficarem tontas. Uma torcia a corda para a outra e viam o mundo girar num entrecortar de imagens, depois, tinham de ficar em pé para ver quem suportava mais a embriaguez da infância.
Seria preciso levar Ariana até o balanço, mas ela criara raízes na escada. Estava pensando numa solução quando a irmã mais nova da Ariana se aproximou:
- Vamos brincar, vamos?
A irmã da Ariana era uma das meninas chatas da rua.
- Não quero brincar com você! Disse com a língua para fora tornando a frase quase ininteligível.
A irmã deu de ombros e saiu com suas cinco chupetas: uma no nariz, outra no ouvido, duas na boca e uma pendurada ao pescoço. Ela ainda era muito criança, chupava chupeta. A da menina estava em cima do telhado, pois um dia a Ariana:
- Se a gente jogar nossas chupetas em cima do telhado elas vão ficar lá para sempre e nós vamos ser amigas pra sempre também.
A menina gostou da idéia, e assim o fizeram.Colocaram as duas chupetas dentro de um saquinho, amarraram com uma fitinha cor-de-rosa, deram nós, contaram até três e num ritual muito puro lançaram as doces borrachas ao telhado da menina. Desde aquele dia as duas nunca mais chuparam chupeta, quando a vontade aparecia, logo pensavam que caso pedissem outra chupeta talvez o pacto perderia o valor. Existem coisas com as quais as crianças não brincam. Então, muito de vez em quando, escondidas uma da outra, elas chupavam o dedo.
Agora, Ariana não queria mais brincar, não respondia.Será que estava de mal? Talvez as chupetas não estivessem mais lá, algum bicho poderia ter rasgado o saquinho, talvez as tivesse levado... O coraçãozinho da menina foi ficando apertado:
- Ariana, levanta um pouquinho, vê se o nosso saquinho ainda está lá em cima da minha casa.
Não era uma casa exatamente, era um barraco de madeira com telhas cinzas e onduladas.Ariana morava no céu. Da cozinha se podia ver toda a casa da menina. Era tudo tão alto ou ela é que era tão pequena?
Ariana não se mexeu, a menina sentiu um impulso de subir pelo menos até o meio da escada, onde já se poderia avistar o telhado. Assim, caso as chupetas não estivessem lá o desespero de sua amiga estaria explicado então, era só achar um jeito de resolver. Não teve coragem de subir, pois os gritos a empurravam para baixo. Pareciam vozes de bicho.
A mãe da Ariana chegou do trabalho e perguntou se a filha sentia algo, ao que ela respondeu:
- Ai, minha cabeça!
Então, era isso, era dor de cabeça. A menina já havia sentido dor de cabeça depois de passar o dia todo rodando no balanço, ou depois de assistir muita televisão. Ariana tomou o remédio que sua mãe lhe deu chorou lágrimas constantes e disse:
- Eu quero uma chupeta.
A menina estremeceu.
- Cadê sua chupeta? Perguntou a mãe.
- Eu quero chupeta! Berrou.
Era o fim daquela amizade, Ariana não resistiu, pediu a chupeta. A menina ficou cheia de indignação, pois ela também sentira vontade, mas nunca fraquejou. Sugava o dedo para que a amizade não fosse sugada.
- Onde você enfiou sua chupeta? A mãe de Ariana perguntava.
- Não sei! Ela respondia olhando para menina que imóvel na ponta da escada trazia em seu olhar o despontar úmido da dor.
A avó e a mãe de Ariana procuravam desesperadamente a chupeta, a fim de fazer com que aqueles gritos cessassem. Então, a irmã mais nova surgiu e com ela o pedido:
- Dá uma chupeta pra mim!
- Não, você tem a sua.
- Dá uma chupeta pra mim! Ai, minha cabeça!
Nesse último grito Ariana esmoreceu. Sua mãe chegou a tempo de impedir que ela rolasse da escada. Pegou-a nos braços e saiu em busca de um vizinho que tivesse um carro para levá-la ao médico. A menina correu para casa, subiu até o ponto mais alto do pé de amora que ficava no quintal. Devia existir ali algum galho através do qual ela pudesse alcançar o telhado, pegar a chupeta e dizer para Ariana que não tinha importância, que elas podiam ser amigas mesmo chupando chupeta. Mas não deu, o galho era fino demais, teve medo. Ficou ali no alto do pé de amora, encolhidinha como fruta que não vingou.
Começou a escurecer, sua mãe começou a berrar:
- Ô menina vira-lata, cadê você!
Desceu silenciosa e dolorosamente da árvore na qual ficou a tarde inteira olhando para o telhado. As chupetas ainda estavam lá. Ela estava no alto, Ariana estava no alto. As chupetas não estavam no céu.
No outro dia, logo pela manhã, viu a mãe da Ariana sair chorando de dentro de um carro de polícia.
- Minha filha, minha filhinha! Repetia em prantos.
Depois, chegou um carro com um caixãozinho. Havia muita gente na casa da Ariana. A menina viu sua mãe, que quase nunca chorava, derramar uma lágrima ao pegá-la pela mão e dizer:
- Sabe a Ariana, ela está no céu...
No céu do telhado, do pé de amora ou do alto da escada? Em que céu estaria Ariana? Foi com sua mãe até a casa da amiga e viu o corpinho envolto em flores no meio da sala. Dona Madalena Roleira, que vendia roupas usadas trouxe um vestidinho branco e uma tiara de flores.
- É um anjinho. Disse Madalena.
Num canto da sala a irmãzinha de Ariana chorava e a menina que até agora não havia dito nada se aproximou dizendo com fúria:
- Por que você não deu a chupeta pra ela?
As pessoas em volta tentaram acalmá-la. Ariana chegou ao céu porque a chupeta não alcançou há tempo o céu de sua boca.

Priscila Santos

2 comentários:

  1. Minha lágrima diz que é a coisa mais linda do mundo! Grandiosíssimo!

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  2. Você conseguiu colocar nesse texto a pureza impagável do sentimento de uma criança. Quando crescemos racionalizamos tanto que esquecemos de olhar para a verdadeira chupeta de nossas vidas...

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