Não havia saído para comprar flores. Olhou para si tão dentro da gordura que escorria do churrasco grego, do mijo que exalava debaixo do viaduto. Aquela moça duvidava das possibilidades de então, usava tênis, moleton e óculos escuros. Ela também pensava que amores de outrora ecoavam suspensos.
Desceu a rua muito dona de seu próprio bairro e, ao dar por isso, achou graça. Pessoas vestiam roupa de passeio e os moradores de rua perambulavam quase sem roupa no centro da metrópole. Dividia sua atenção entre o rés do chão e o pé direito dos prédios antigos da Avenida São João. Era inverno já.
Primeiro tinha que mandar consertar a máquina fotográfica. A loja ficava no nono andar. Claustrofóbico e antigo, o elevador se revelava hipnótico. Há algum tempo a dominava aquele impulso de perguntar o que lhe vinha à cabeça e a pergunta soou estranha à ascensorista. Já sonhei sim moça, duas vezes.
Se o conserto custasse mais de cem reais, seria melhor comprar outra máquina. Ao final das faturas, depósitos e transferências, sentiu vontade de gérberas. Mas havia também a latência da “tesoura do desejo de mudar”. Queria o corte que dissesse a si mesma quem realmente parecia ser. Entrou então na galeria do filho de Chuck Berry e tudo lhe soou demasiado.
Lembrou-se novamente das flores. Há algum tempo esta troca de delicadeza se rarefazia entre elas. Contudo, gérberas não havia, só vermelhos e brancos cravejavam insistentes. Observou nas pétalas as reentrâncias perfumadas, sofisticadas e obscenas, tentando ignorar aquele frio que lhe vinha do estômago como um mau presságio.
O cravo era a flor de uma história muito outra. Pensou em levar as rosas de todas as histórias, mas aquela era a sua e nela não admitia lugares comuns. Na nuca do rapaz a sua frente viu tatuado o ano 1982, lhe veio novamente a vontade da pergunta descabida, mas antes que as palavras saltassem da boca, o sinal abriu e o moço foi engolido pelas gentes.
Na calçada, sobre um improvisado ninho de amor, dormia um casal de moradores de rua, a mão dele desenhava na cintura da mulher o justo contorno da particularidade mundana, apesar de todos os que passavam. Talvez da náusea que lhe causava aquele homem que cagava quase indiferente entre os passantes nascesse uma flor, ainda que feia, para a história daquele casal.
Seu ouvido rompeu buzinas, motores e encontrou o som do sino da igreja que anunciava o inaudito que por ser também inaudível não fora notado por ninguém. Às vezes, alguém fazia o sinal da cruz como quem espanta um mosquito. Na porta da igreja, outra vez as rosas. E também lírios brancos que soavam como afronta aos delírios urbanos daquela moça.
Ao lado da banca, um homem dormia com seu cão. Ao terminar de observá-los, encontrou no olhar de uma senhora que passava o desejo de partilhar a palavra. Deram ainda mais alguns passos e depois da travessia do semáforo. Não é bonito ver um cão tão companheiro? Sim, pena que ele e o homem estejam relegados à mesma calçada, a senhora não acha?
Riu da besteira que disse, pois se lembrou da propaganda de turismo para cachorros que havia lido outro dia. Cachorros viajam, meninos também. Sentado nos degraus de uma loja fechada, o garoto prepara-se para a viagem. Estende a blusa sobre a cabeça e num passe de mágica faz o mundo desaparecer e parecer mais vivo graças à pedra fundamental.
No quarteirão de cima, a cabeça do PM, que nada sabe sobre o menino já bem distante, desenha o mundo num giro que, não fossem as limitações do pescoço, teria 360 graus. A bunda que chamava a atenção devia ser ainda mais quente, proporcionaria mais prazer que todo craque, que todo oxi, que todo espírito santo, amém.
Na porta da Universal, a lista de nomes pra corrente de orações. Deus está te chamando, minha filha. Diz pra ele que estou ocupada. Na cabana de papelão onde se abrigava um homem, ela lia: liquidado. Embaixo do viaduto, debaixo do cobertor, outro tentava tornar sua punheta menos pública. No gramado do Mc Donald’s outro esfregava seu pau na terra num rito religare.
Ainda era possível alguma flor? Já se aproximava o horário do rush e na Brigadeiro, quase nenhuma doçura a não ser a do cheiro da dama da noite que disputava o ar com o monóxido de carbono. Quase nenhuma dignidade, salvo a da negra, obesa e seminua que escrevia, enquanto aguardava suas calcinhas secarem nas grades da garagem do prédio residencial.
Escrevia com caneta Bic num caderno de espiral de arame, suas tetas invadiam as letras numa comunhão de carne e palavra que ninguém ouvia. Os carros estendiam um tapete de faróis. Arrancou então uma das folhas, amassou e a arremessou à guia. Não fosse por isso sua flor jamais a moça conheceria. Nem cravos, nem gérberas: uma margarida azul de palavras e linhas.
Priscila Santos
Uau. Mais um texto que me deixa sem palavras.
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